terça-feira, 30 de janeiro de 2018

CASSIANO RICARDO (1895-1974): OITO POEMAS




Ferreira Gullar passou boa parte de sua vida repetindo que a poesia nasce do espanto.  Desse achado pessoal, de fundamentação bem subjetiva,  ele formulou os termos de sua poética, dando a entender que os diversos caminhos que seguiu ao longo de seu percurso se fizeram ao sabor dos variados espantos que experimentou.   Gosto da formulação de Gullar, embora,  como ele mesmo reconheça, relacionar poesia e espanto não seja nenhuma novidade, desde pelo menos Platão.   Mas sem ter tido a ambição de desenvolver sua proposição num nível propriamente teórico – até porque rejeitava que um poeta e um teórico pudessem conviver num só corpo – , Gullar dela extraiu um corolário, bastante duvidoso, que o vi reiterar algumas vezes em entrevistas: a de que um poeta, tendo atingido uma certa idade, não teria mais, a rigor,  como continuar a ser um poeta, pois lhe faltaria capacidade de espantar-se.  Do muito que poder haver de duvidoso aí, me parece que o caso de Cassiano Ricardo vem justo para desmentir Gullar.  Pois Cassiano – poeta que li com alguma frequência há muitos anos e ao qual nunca tinha voltado – me dá impressão, quando o lia, eu muito jovem, já tinha essa impressão firmada,  de ter ficado melhor justamente em seus últimos livros, em especial no ótimo Jeremias sem chorar, de 1964,  quando o poeta já tinha 70 anos, seu penúltimo.  Não posso falar do último, Os sobreviventes (1971), pois  se  o li não me lembro, assim como não lembro  jamais de ter visto um exemplar.
Poeta de segunda plana da fase heroica do Modernismo, Cassiano creio ter sido sempre um conservador em matéria de política.  Isso é óbvio em seus primeiros anos de atuação na vida literária, com Plínio Salgado e Menotti Del Picchia, assim como é óbvio em seu mais famoso e festejado livro, Martim-Cererê  (1928), obra de diluição,  convencional, tanto em termos de proposta nacionalista-modernista quanto no tratamento da matéria poética, tendente ao sentimentalismo também no trato do lirismo.  Quando falo que ele vai melhorando – a meus olhos, claro, não precisa ninguém me acompanhar – como poeta com o correr do tempo, não é tanto por ter se aproximado das vanguardas das décadas de 1950 e 60, uma vez que aí também sua contribuição tende ao convencional, embora seu “A serenata sintética”, de 1947, poema bem conhecido e com o qual resolvi aqui abrir a postagem para “situar” o leitor (cf. abaixo), seja admirável e antecipador.  Mas penso que Cassiano cresce como poeta na medida mesmo em que se livra do renitente sentimentalismo e trata seu temário habitual – incluindo um cristianismo muito mais convencional do que o de Murilo Mendes, por exemplo - driblando as analogias mais óbvias encontradiças à farta em grande parte de sua produção,  abrindo-se por fim de forma mais liberta ao... espanto.  O espanto de que falava Gullar. 
De qualquer forma, creio se tratar de uma obra  que bem pode estar na expectativa de uma revisitação mais acurada. Vai aqui um pouco de minha microantologia pessoal de Cassiano.





A SERENATA SINTÉTICA

lua                               morta
    rua                                    torta
    tua                       porta




PEQUENA ODE ATONAL

A borboleta no
vidro da janela até que
- cansada –
caiu ao chão e aí ficou
abrindo e fechando as
as’as em câmara lenta.

Esperei o instante em
que, atônita e átona,
ela fechou as pétalas
e a segurei, larvar,
entre o indicador e o
polegar.

Frágil borboleta
mais fácil de matar
por dó, mas fácil de
reduzir a pó (ou púrpura)
do que de salvar.

(Quem ambos os gestos
requeriam uma só
delicadeza.)

Saí a terraço e a
soltei ao vento; e a pobre,
como um til de papel,
foi pousar numa flor da
cerca de resedá.

Senti-me liberto
de sua enorme angústia.
Respirei, nela, o meu
ar.

Coisa sem alvo de
tão minúscula, in-
corpúscula – haver salvo
uma borboleta.
Sem indagar, sequer,
se azul ou preta.



CANTO INCIVIL

Basta estar vivo
pra ser subversivo
( Ou subservivo.)
Basta não figurar
no registro civil
pra ser incivil.
( Ou vil, pra encurtar a palavra.)

Basta ser incivil
pra não ser ninguém.
Basta não ser ninguém
pra ter o apelido
que a polícia dá
a quem não é ninguém.

Tinha eu dois nomes:
Zebedeu,
que a miséria me deu.
E “elemento subversivo”
que a polícia me deu.

E apenas uma dor:
a que a vida me deu.
E eis-me aqui, incivil,
(ou vil, pra encurtar a palavra).

Uma patada de cavalo
em meio do comício
e eis-me aqui, estendido em decúbito
dorsal.

(Ou já cortado ao meio,
sem dor, nem sal.)



O CÃO E O CACHORRO

I

Não galgo, olho azul,
fidalgo.

Mas um simples cachorro.
Já seco.

Não cão
de uma constelação.

Mas um simples cachorro
de beco.

Não um cão do rei
Arthur.

Mas um simples cachorro,
tout court.

Já reduzido a um osso,
de magro,

osso comendo um osso:

O osso que ele é,
por fome;

e o osso que ele come.


II

O fim
do mundo será assim:

à míngua,
e já em outra língua.

Um cão
que se fez cachorro

roendo um alvo osso
no beco.

(O seu derradeiro
almoço.)

De quem será esse osso?



O INIMIGO E O IRMÃO

Não matarás, sem que, no mesmo ato,
te suicides, num só relógio exato.
És o homem que talvez ainda se salve
pela certeza de que destruir o irmão

é ao mesmo tempo destruíres a ti mesmo.
O medo – que terás – de que a morte de Abel
seja também a tua será um gládio de fogo
sobre duas cabeças, fim do jogo.

O medo se transforma em flor de espera,
em expectativa, em sucessiva rosa.
Já que ambos somos uma só coisa viva,
um em frente do outro – mútuo espelho.

Tão minha e tua é a vida de nós-dois
que – homicida – verás, logo depois,
em teu corpo sangrar minha ferida.
A arma é uma só, bigúmea, simultânea.

Choremos, pois, um no ombro do outro.
O ser humano já não se identifica,
apenas, por um sinal datiloscópico,
mas por ser um animal que chora.

Toda lágrima é uma secreta aurora.
Choremos, pois, um no ombro do outro.
Do nosso choro de arrependimento,
quem sabe – nascerá o arco-íris.



PERCURSO

         O arco-íris,
                   o urso.

         Meus dois sustos
         iniciais.

         Mas o tempo
         ponte que cresceu
         entre mim e eu.
         E por onde vim.

         No enterro
         de cada minuto,
                   pergunto:
         quem morreu
                   em mim?

         O arco-íris?
                   O urso?



ZANGA CONTRA UM GUARDA-CHUVA

Vou jogar o meu guarda-chuva
no depósito dos objetos sem uso.
Guarda-chuva ridículo, monstruoso
morcego
que abro contra o céu negro.

Não mais me adianto abri-lo contra
                   a chuva das horas.
Nem sobre o sereno que cai
sobre as flores dormidas.
O seu lugar será um museu, um arquivo.
Não mais o mundo dos objetos súbitos
em que vivo.


Não mais me adianta abrir meu gamp
se a chuva é de sol.
Nem me adiantará abrir o guarda-sol
se chove mas sem perspectiva, sem
                                               chuva
Se a Terra se transformou numa
                                               flor
radioativa.

Sob a poeira de estrôncio noventa
não sabemos se está chovendo ou não,
sobre a matéria viva.  A própria noite
tem a aparência de um enorme
guarda-chuva
                                      de viúva
aberto mas jogado à praia.




TRANSFUSÃO

1

O sangue no globo de vidro
e a agulha já em minha veia.
Presa ao tubo condutor.
Gota por gota.  Investigo
que irmão, qual desconhecido
me oferta esta rosa líquida
que me entra no pulso sem dor.

Procuro inutilmente, mesmo
com o dom de criar figuras
que a imaginação me dá,
quem será, quem não será.

Mais alheio que a mão esquerda
diante do que a direita faz.
Mais anônimo que o Cântico
dos Cânticos, só este sangue
ora transfuso para meu uso
que não sei sequer de onde vem.

Sou um morcego pensante.
Uma sanguessuga inquieta
e interrogativa; nuclear.
Sugando substância viva.
Mas de um corpo tão distante
de mim como um telstar.

(Sangue doado por um Ninguém
para outro igual Ninguém.)

Será de um anjo de um bandido?
De um simples homem da rua?
De um príncipe, um rajá,
não será.
De um rei também não será.
Azul é que não será.

2

Esta a graça que descubro
gota a gota rosa em sílabas
e me entra na circulação.

Saber que Ninguém é o nome
do  meu verdadeiro irmão.
Um irmão que não sei quem seja.
Se louro, descalço ou triste.

Só sei que seu sangue é rubro
como lacrima-cristi.

(Quando se ouve alguma flauta
não importa se é de prata
ou – na manhã magnólia –
a que Ulisses ouviu na Eólia.)

Ignoro de quem este sangue
ora transfuso para meu uso.
Se de um branco, se de um preto,
de um chim, de um espadachim.
Será de um ateu, de um eslavo?
Azul é que não será.
Do Ali Kan, do Xá da Pérsia
é que também não será.

3

Seja, porém, de quem for
(sanguinolado, medito)
talvez guarde a reminiscência
de algum já imemorial rito.
O de beber sangue do irmão
como se bebe uma flor.

(Ontem – ato sanguinolento –
Hoje – apenas sanguino-lento.)


Cassiano Ricardo.  Antologia poética.  RJ: Editora do Autor, 1964.