quinta-feira, 28 de setembro de 2017

ALBERTO CAEIRO: POEMA VIII DE O GUARDADOR DE REBANHOS



Num meio-dia de fim de primavera
     Tive um sonho como uma fotografia.
     Vi Jesus Cristo descer à terra.
     Veio pela encosta de um monte
     Tornado outra vez menino,
     A correr e a rolar-se pela erva
     E a arrancar flores para as deitar fora
     E a rir de modo a ouvir-se de longe.

     Tinha fugido do céu.
     Era nosso demais para fingir
     De segunda pessoa da Trindade.
     No céu era tudo falso, tudo em desacordo
     Com flores e árvores e pedras.
     No céu tinha que estar sempre sério
     E de vez em quando de se tornar outra vez homem
     E subir para a cruz, e estar sempre a morrer
     Com uma coroa toda à roda de espinhos
     E os pés espetados por um prego com cabeça,
     E até com um trapo à roda da cintura
     Como os pretos nas ilustrações.
     Nem sequer o deixavam ter pai e mãe
     Como as outras crianças.
     O seu pai era duas pessoas
     Um velho chamado José, que era carpinteiro,
     E que não era pai dele;
     E o outro pai era uma pomba estúpida,
     A única pomba feia do mundo
     Porque não era do mundo nem era pomba.
     E a sua mãe não tinha amado antes de o ter.


     Não era mulher: era uma mala
     Em que ele tinha vindo do céu.
     E queriam que ele, que só nascera da mãe,
     E nunca tivera pai para amar com respeito,
     Pregasse a bondade e a justiça!


     Um dia que Deus estava a dormir
     E o Espírito Santo andava a voar,
     Ele foi à caixa dos milagres e roubou três.
     Com o primeiro fez que ninguém soubesse que ele tinha fugido.
     Com o segundo criou-se eternamente humano e menino.
     Com o terceiro criou um Cristo eternamente na cruz
     E deixou-o pregado na cruz que há no céu
     E serve de modelo às outras.
     Depois fugiu para o sol
     E desceu pelo primeiro raio que apanhou.

     Hoje vive na minha aldeia comigo.
     É uma criança bonita de riso e natural.  
     Limpa o nariz ao braço direito, 
     Chapinha nas poças de água,
     Colhe as flores e gosta delas e esquece-as.  
     Atira pedras aos burros,
     Rouba a fruta dos pomares
     E foge a chorar e a gritar dos cães.
     E, porque sabe que elas não gostam
     E que toda a gente acha graça,
     Corre atrás das raparigas pelas estradas
     Que vão em ranchos pela estradas
     com as bilhas às cabeças
     E levanta-lhes as saias.

     A mim ensinou-me tudo.
     Ensinou-me a olhar para as cousas.
     Aponta-me todas as cousas que há nas flores.
     Mostra-me como as pedras são engraçadas 
     Quando a gente as tem na mão
     E olha devagar para elas.

     Diz-me muito mal de Deus.
     Diz que ele é um velho estúpido e doente,
     Sempre a escarrar no chão
     E a dizer indecências.
     A Virgem Maria leva as tardes da eternidade a fazer meia.
     E o Espírito Santo coça-se com o bico
     E empoleira-se nas cadeiras e suja-as.
     Tudo no céu é estúpido como a Igreja Católica.
     Diz-me que Deus não percebe nada
     Das coisas que criou —
     "Se é que ele as criou, do que duvido" —
     "Ele diz, por exemplo, que os seres cantam a sua glória, 
     Mas os seres não cantam nada.
     Se cantassem seriam cantores.
     Os seres existem e mais nada,
     E por isso se chamam seres."
     E depois, cansados de dizer mal de Deus,
     O Menino Jesus adormece nos meus braços
     e eu levo-o ao colo para casa.
     .............................................................................
     Ele mora comigo na minha casa a meio do outeiro.
     Ele é a Eterna Criança, o deus que faltava.
     Ele é o humano que é natural,
     Ele é o divino que sorri e que brinca.
     E por isso é que eu sei com toda a certeza
     Que ele é o Menino Jesus verdadeiro.

   

  E a criança tão humana que é divina
     É esta minha quotidiana vida de poeta,
     E é porque ele anda sempre comigo que eu sou poeta sempre,
     E que o meu mínimo olhar
     Me enche de sensação,
     E o mais pequeno som, seja do que for,
     Parece falar comigo.
     A Criança Nova que habita onde vivo
     Dá-me uma mão a mim
     E a outra a tudo que existe
     E assim vamos os três pelo caminho que houver,
     Saltando e cantando e rindo
     E gozando o nosso segredo comum
     Que é o de saber por toda a parte
     Que não há mistério no mundo
     E que tudo vale a pena.

     A Criança Eterna acompanha-me sempre.
     A direção do meu olhar é o seu dedo apontando.
     O meu ouvido atento alegremente a todos os sons
     São as cócegas que ele me faz, brincando, nas orelhas.

     Damo-nos tão bem um com o outro
     Na companhia de tudo
     Que nunca pensamos um no outro,
     Mas vivemos juntos e dois
     Com um acordo íntimo
     Como a mão direita e a esquerda.

     Ao anoitecer brincamos as cinco pedrinhas
     No degrau da porta de casa,
     Graves como convém a um deus e a um poeta,
     E como se cada pedra
     Fosse todo um universo
     E fosse por isso um grande perigo para ela
     Deixá-la cair no chão.

     Depois eu conto-lhe histórias das cousas só dos homens
     E ele sorri, porque tudo é incrível.
     Ri dos reis e dos que não são reis,
     E tem pena de ouvir falar das guerras,
     E dos comércios, e dos navios
     Que ficam fumo no ar dos altos-mares.
     Porque ele sabe que tudo isso falta àquela verdade
     Que uma flor tem ao florescer
     E que anda com a luz do sol
     A variar os montes e os vales,
     E a fazer doer nos olhos os muros caiados.

     Depois ele adormece e eu deito-o.
     Levo-o ao colo para dentro de casa
     E deito-o, despindo-o lentamente
     E como seguindo um ritual muito limpo
     E todo materno até ele estar nu.
     Ele dorme dentro da minha alma
     E às vezes acorda de noite
     E brinca com os meus sonhos.
     Vira uns de pernas para o ar,
     Põe uns em cima dos outros
     E bate as palmas sozinho
     Sorrindo para o meu sono.
     ......................................................................
     Quando eu morrer, filhinho,
     Seja eu a criança, o mais pequeno.
     Pega-me tu ao colo
     E leva-me para dentro da tua casa.
     Despe o meu ser cansado e humano
     E deita-me na tua cama.
     E conta-me histórias, caso eu acorde,
     Para eu tornar a adormecer.
     E dá-me sonhos teus para eu brincar
     Até que nasça qualquer dia
     Que tu sabes qual é.
     .....................................................................
     Esta é a história do meu Menino Jesus.
     Por que razão que se perceba
     Não há de ser ela mais verdadeira
     Que tudo quanto os filósofos pensam
     E tudo quanto as religiões ensinam?



Fernando Pessoa.  Obra poética.  Rio de Janeiro: Aguilar, 1965


Todas as crianças desta postagem foram pintadas por Giulio Del Torre (Itália, 1856-1932)

sábado, 16 de setembro de 2017

HILDA HILST SEIS VEZES

Hilda Hilst (1930-2014)


Poema IV de Balada do Festival
                   A Vinícius de Moraes

Na hora da minha morte
estarão ao meu lado mais homens
infinitamente mais homens do que mulheres.
(Porque fui mais amante que amiga)
Sem dúvida dirão as coisas que não fui.
Ou então com grande generosidade:
Não era mau poeta a pequena Hilda.

Terei rosas no corpo, nas mãos, nos pés.
Sei disso porque fiz um pedido piegas
à minha mãe: “Quero ter rosas comigo
na hora da minha morte”.

E haverá rosas.
São todos tão delicados
tão delicados...

Na hora da minha morte
estarão ao meu lado mais homens
infinitamente mais homens que mulheres.
E um deles dirá um poema sinistro
a jeito de balada em tom menor...

Tem tanto medo da terra
a moça que hoje se enterra.
Fez poema, fez soneto
muito mais meu do que dela.
Lá, lá, ri, lá, lá lá, lá.



Poema 4 de “Do amor contente e muito descontente” 

Falemos de amor, senhores,
Sem rodeios.
[Assim como quem fala
Dos inúmeros roteiros
De um passeio.]
Tens amado?  Claro.
Olhos e tato
Ou assim como tu és
Neste momento exato.
Frio, lúcido, compacto
Como me lês
Ou frágil e inexato
Como te vês.
Falemos do amor
Que é o que preocupa
Às gentes.
Anseio, perdição, paixão,
Tormento,tudo isso
Meus senhores
Vem de dentro.
E de dentro vem também
A náusea.  E o desalento.
Amas o pássaro? O amor?
O cacto? Ou amas a mulher
De um amigo pacato?
Amas, te sentindo invasor
E sorrindo
Ou te sentindo invadido
E pedindo amor.  (Sim?
Então não amas, meu senhor)
Mas falemos do amor
Que é o que preocupa
Às gentes: nasce de dentro
E nasce de repente.
Clamores e cuidados
Memórias e presença
Tudo isso tem raiz, senhor,
Na benquerença.
E é o amor ainda
A chama que consome
O peito dos heróis.
E em o amor, senhores,
Que enriquece, clarifica
E atormenta a vida.
E que se fale do amor
Tão sem rodeios
Assim como quem fala
Dos inúmeros roteiros
De um passeio.






Poema 10 de “Do amor contente e muito descontente”

Tenho pedido a todos que descansem
De tudo o que cansa e mortifica:
O amor, a fome, o átomo, o câncer.
Tudo vem a tempo no seu tempo.
Tenho pedido às crianças mais sossego
Menos riso e muita compreensão para o brinquedo.
O navio não é trem, o gato não é guizo.

Quero sentar-me e ler nesta noite calada.
A primeira vez que li Franz Kafka
Eu era uma menina. (A família chorava.)
Quero sentar-me  e ler mas o amigo me diz:
O mundo não comporta tanta gente infeliz.

Ah, como cansa querer ser marginal
       Todos os dias.
Descansem, anjos meus.  Tudo vem a tempo
No seu tempo.  Também é bom ser simples.

É bom ter nada. Dormir sem desejar
Não ser poeta.  Ser mãe. Se não puder ser pai.

Tenho pedido a todos que descansem
De tudo o que cansa e mortifica.
         Mas o homem

         Não cansa.




TESTAMENTO LÍRICO

Se quiserem saber se pedi muito
Ou se nada pedi, nesta minha vida,
Saiba, senhor, que sempre me perdi

Na criança que fui, tão confundida.

À noite ouvia vozes e regressos.
A noite me falava sempre sempre
Do possível de fábulas.  De fadas.

O mundo na varanda.  Céu aberto.
Castanheiras doiradas.  Meu espanto
Diante das muitas falas, das risadas.

Eu era uma criança delirante.

Nem soube defender-me das palavras.
Nem soube dizer das aflições, da mágoa
De não saber dizer coisas amantes.

O que vivia em mim sempre calava.

E não sou mais que a infância.  Nem pretendo
Ser outra, comedida.  Ah, se soubésseis!
Ter escolhido um mundo, este em que vivo

Ter rituais e gestos e lembranças.
Viver secretamente.  Em sigilo
Permanecer aquela, esquiva e dócil

Querer deixar um testamento lírico

E escutar (apesar) entre as paredes
Um ruído inquietante de sorrisos
Uma boca de plumas, murmurante.

Nem sempre há de falar-vos um poeta.
E ainda que minha voz não seja ouvida
Um dentre vós resguardará (por certo)

A criança que foi.  Tão confundida. 



 Poema VI  de “Dez chamamentos ao amigo”

Sorrio quando penso
Em que lugar da sala
Guardarás o meu verso.
Distanciado
Dos teus livros políticos?
Na primeira gaveta
Mais próxima à janela?
Tu sorris quando lês
Ou te cansas de ver
Tamanha perdição
Amorável centelha
No meu rosto maduro?
E te pareço bela
Ou apenas te pareço
Mais poeta talvez
E menos séria?
O que pensa o homem
Do poeta? Que não há verdade
Na minha embriaguez
E que me preferes
Amiga mais pacífica
E menos aventura?
Que é de todo impossível
Guardar na tua sala
Vestígio passional
Da minha linguagem?
Eu te pareço louca?
Eu te pareço pura?
Eu te pareço moça?

Ou é mesmo verdade
Que nunca me soubeste?



O REIZINHO GAY

Mudo, pintudão
O reizinho gay
Reinava soberano
Sobre toda nação.
Mas reinava...
APENAS...
Pela linda peroba
Que se lhe adivinhava
Entre as coxas grossas.
Quando os doutos do reino
Fizeram-lhe perguntas
Como por exemplo
Se um rei pintudo
Teria o direito
De somente por isso
Ficar sempre mudo
Pela primeira vez
Mostrou-lhes a bronha
Sem cerimônia.
Foi um Oh!!! geral
E desmaios e ais
E doutos e senhoras
Despencaram nos braços
De seus aios.
E de muitos maridos
Sabichões e bispos
Escapou-se um grito.
Daí em diante
Sempre que a multidão
Se mostrava odiosa
Com a falta de palavras
Do chefe da Nação
O reizinho gay
Aparecia indômito
Na rampa ou na sacada
Com a bronha na mão.
E eram os agudos
Dissidentes mudos
Que se ajoelhavam
Diante do mistério
Desse régio falo
Que de tão gigante
Parecia etéreo.
E foi assim que o reino
Embasbacado, mudo
Aquietou-se sonhando
Com seu rei pintudo.
Mas um dia...
Acabou-se da turba a fantasia.
O reizinho gritou
Na rampa e na sacada
Ao meio-dia:
Ando cansado
De exibir meu mastruço
Pra quem nem é russo.
E quero sem demora
Um buraco negro
Pra raspar meu ganso.
Quero um cu cabeludo!
E foi assim
Que o reino inteiro
Sucumbiu de susto.
Diante de tal evento...
Desse reino perdido
Na memória dos tempos
Só restaram cinzas
Levadas pelo vento.

Moral da estória:
a palavra é necessária
diante do absurdo.

Hilda Hilst. Da poesia.  SP: Companhia das Letras, 2017.