sexta-feira, 29 de abril de 2016

JOÃO CABRAL DE MELO NETO (1920-1999)





A CRIADORA DE URUBUS
 

A mulher de Seu Costa
(com medo se sabia)
criava urubus no galinheiro
junto com a criação comezinha.

Decepção ao saber
a correta razão:
não era pelo gosto doentio
de criar tais bichos do Cão,

nem pelo exercício
do estranho e seus desvãos:
mas sim porque o urubu protege,
é padre, abençoa a criação.

João Cabral de Melo Neto.  Obra completa.  RJ: Nova Aguilar, 2003.

 

 

Oswaldo Goeldi, "Urubus e casa ao fundo"

 

 

 

 

quarta-feira, 20 de abril de 2016

ADÃO VENTURA (1946-2004)


NEGRO FORRO

 

minha carta de alforria
não me deu fazendas,
nem dinheiro no banco,
nem bigodes retorcidos.

minha carta de alforria
costurou meus passos
aos corredores da noite
de minha pele.




In: Paulo Colima (org.). Antologia contemporânea da poesia negra brasileira.  SP: Global, 1982.


Ilustração de Talarico
 

sexta-feira, 15 de abril de 2016

MÁRIO DE ANDRADE E A PLUTOCRACIA PAULISTA

                                                                                De Lira Paulistana



Moça linda bem tratada,
Três séculos de família,
Burra como uma porta:
Um amor.

 Granfino do despudor,
Esporte, ignorância e sexo,
Burro como uma porta:
Um coió. 

Mulher gordaça, filó
De ouro por todos os poros
Burra como uma porta:
Paciência...

 Plutocrata sem consciência,
Nada porta, terremoto
Que a porta do pobre arromba:
Uma bomba.



Mário de Andrade. Poesias completas, 4 ed. SP: Martins, 1974.

domingo, 10 de abril de 2016

NEI LEANDRO DE CASTRO (1940)


ANJO BARROCO

 Eu vivo com meus fantasmas,
um deles é sexual.
Sátiro, persegue as moças
derruba-as pelas esquinas,
levanta saias de freiras
e sorri com a visão
da brancura imaculada
de suas calcinhas claras.
O meu fantasma é anêmico
e tem peito enfisemático,
a sua risada estronda
nos corredores escuros
quando surpreende a adúltera
em decúbito ventral.
Fauno moderno, o fantasma
galopa em bicicletas.
Querendo, vira selim
onde meninas estrepam
o sexo de flores brancas.
Meu fantasma tem roupões
que ele veste por cima
do corpo peludo em pêlo.
Assim vestido, ele vai
para a porta dos colégios,
acena com picolés
e docinhos pras crianças
até que, na outra esquina,
quando o guarda se afasta
ele exibe seus guardados:
duas esferas que apóiam
a envergadura do sexo.
Meu fantasma esquadrinha
as fechaduras antigas
por onde ele pode ver,
com as têmporas latejando,
o tímido que dilacera
a noiva em lua-de-mel.
Nos tabiques dos hotéis
de terceira e quarta classe
ele cola seus ouvidos
e ouve a cama rangendo,
ouve a mulher docemente
trespassada. Ouve ainda
o macho que estertora
na explosão do orgasmo.
Meu fantasma vai à praia
mas prefere estar na sombra
porque o sol o dilui.
E na sombra das barracas
com olho em grande angular
olho-de-peixe aberto
ele grava nas retinas
um só pelinho de púbis
que escapa dos maiôs.
Nas piscinas, seu mergulho
só esbarra, por acaso,
em coxas, seios e nádegas.
Anjo barroco, o fantasma
entra no confessionário
e goza, ele e o padre,
com as confissões da viúva.
Meu fantasma não lê livros
porque acha que em sexo
não devem entrar palavras.
Prefere correr o risco
de ser preso em flagrante
comprando baralhos sujos
em que reis trepam rainhas
e as damas de ouro e copas
se empalam no ás de paus.
Alguém precisa ver só
como meu fantasma vibra
com os seios, todos eles,
exceto, claro, os murchos.
Peitos de adolescentes
libertos sob os vestidos
cujos bicos, dois espinhos,
fazem buracos simétricos
na blusa.  Os intumescidos,
das mães que doam seu leite
sob seus olhos mendigos.
Seios, seios, seios, seios
até os reproduzidos
na séria revista médica.
Meu fantasma tem um trauma:
nunca esmagou uma pulga
nas nádegas de uma amante
negra, vestida apenas
de longas meias de renda. 
Ah, meu fantasma, bolinas
até a menina dos olhos.
Te exorcizo.  Vade retro.


Neil de Castro. Zona erógena.  Rio: Edições Eros, 1981.




 
O Anjo, escultura de Sun Yuan e Peng Yu

segunda-feira, 4 de abril de 2016

QUATRO POEMAS DE ANA CRISTINA CÉSAR (1952-1983)




ANÔNIMO

Sou linda; gostosa; quando no cinema você roça o ombro em mim aquece, escorre,já não sei mais quem desejo, que me assa viva, comendo coalhada ou atenta ao buço deles, que ternura inspira aquele gordo aqui, aquele outro ali, no cinema é escuro e a tela não importa, só o lado, o quente lateral, o mínimo pavio.  A portadora deste sabe onde me encontro até de olhos fechados; falo pouco; encontre; esquina da Concentração com Difusão, lado esquerdo de quem vem, jornal na mão, discreta.

 

NADA, ESTA ESPUMA

Por afrontamento do desejo
insisto na maldade de escrever
mas não sei se a deusa sobe à superfície
ou apenas me castiga com seus uivos.
Da amurada deste barco
quero tanto os seios da sereia.

 

 
ATRÁS DOS OLHOS DAS MENINAS SÉRIAS

Mas poderei dizer-vos que elas ousam?  Ou vão, por injunções muito mais sérias, lustrar pecados que jamais repousam?

 
 

SAMBA-CANÇÃO

Tantos poemas que perdi.
Tantos que ouvi, de graça,
pelo telefone – taí,
eu fiz tudo pra você gostar,
fui mulher vulgar,
meia-bruxa, meia-fera,
risinho modernista
arranhado na garganta,
malandra, bicha,
bem viada, vândala,
talvez maquiavélica,
e um dia emburrei-me,
vali-me de mesuras
(era uma estratégia),
fiz comércio, avara,
embora um pouco burra,
porque inteligente me punha
logo rubra, ou ao contrário, cara
pálida que desconhece
o próprio cor-de-rosa,
e tantas fiz, talvez
querendo a glória, a outra
cena à luz de spots,
talvez apenas teu carinho,
mas tantas fiz, tantas fiz...


Ana Cristina Cesar.  A teus pés.  SP: Brasiliense, 1982.