domingo, 25 de maio de 2014

ALBERTO LINS CALDAS




o general dorme

• o general dorme •
• enquanto moscas saem •
• dos seus ouvidos •

• porisso mesmo talvez •
• o general não durma •
• o general ta é morto •

• mas ninguem confirma •
• se o general morreu •
• mesmo com as moscas •
 
• o general tambem fede •
• como animal morto •
• o general fede e rosna •

• o general se levanta •
• mas isso não é vida •
• são gazes meu general •

• é preciso fazer silencio •
• porq o general não dorme •
• eles não dormem nunca • 

• mesmo agora morto •
• o general e todos eles •
• não dormem não morrem •

• enquanto não degolarmos •
• o general e todos eles •
• tarão sempre vivos demais •

Alberto Lins Caldas. De corpo presente.  RJ: Íbis Libris, 2013.

domingo, 18 de maio de 2014

SÓROR VIOLANTE DO CÉU


MADRIGAL

 

Em fim fenece o dia,
Em fim chega da noite o triste espanto,
E naõ  chega desta alma o doce encanto:
Em fim fica triunfante a tyrannia,
Vencido o sofrimento,
Sem alívio meu mal, eu sem alento,
A sorte sem piedade,
Alegre a emulação, triste a vontade,
O gosto fenecido,
Eu infelice em mim, Lauro esquecido.
Quem vio mais dura sorte?
Tantos males, amor, para huma morte?
Naõ basta contra a vida
Esta ausência cruel, esta partida?
Naõ basta tanta dor, tanto receyo?
Tanto cuidado, ay triste, e tanto enleyo?
Naõ basta estar ausente,
Para perder a vida infelizmente,
Senaõ também neste cruel confltio
Me negas o socorro de hum escrito?
Porque esta dor, que a alma me penetra,
Naõ ache o mayor bem na menor letra?
Ay, bem fazes, amor, tirame tudo,
Naõ haja alivio naõ, naõ haja escudo,
Que a vida me defenda
Tudo me falte em fim, tudo me offenda,
Tudo me tire a vida,
Pois eu naõ a perdi na despedida.


Nadiá Paula Ferreira  (org.). Cancioneiro da poesia barroca em língua portuguesa.  EdUERJ, 2006.

           
     Esta antologia da poesia seiscentista traz em seu Prefácio a seguinte obsevação da organizadora: “(...) optamos pela reprodução da versão estrita desses impressos, não fazendo qualquer tipo de correção na pontuação e na ortografia.”

terça-feira, 13 de maio de 2014

JOSÉ EMILIO PACHECO




ANTIGOS AMIGOS SE ENCONTRAM

Já somos tudo aquilo
contra o que lutamos aos vinte anos.

 
ANTIGUOS COMPAÑEROS SE REÚNEN

Ya somos todo aquello
contra lo que luchamos a los veinte años.


 

INDESEJÁVEL

O guarda não me deixa entrar.
Já passei do limite de idade.
Provenho de um país que já não existe.
Meus documentos não estão em ordem.
Falta um carimbo.
Necessito outra assinatura.
Não falo o idioma.
Não tenho conta no banco.
Fui reprovado no exame de admissão.
Cancelaram minha vaga na grande fábrica.
Me desempregaram hoje e para sempre.
Careço inteiramente de influências.
 
Estou neste mundo há muito tempo.
E nossos amos(*)  dizem que já é hora
e calar-me e meter-me no lixo.

(*) na tradução do poema, nos dois locais abaixo indicados, está “amor”, o  que se configura como  evidente erro de revisão.

 
INDESEABLE

No me deja pasar el guardia.
He traspasado el límite de edad.
Provengo de un país que ya no existe.
Mis papeles no están en orden.
Me falta un sello.
Necesito otra firma.
No hablo el idioma.
No tengo cuenta en el banco.
Reprobé el examen de admisión.
Cancelaron mi puesto en la gran fábrica.
Me desemplearon hoy y para siempre.
Carezco por completo de influencias.

Llevo aquí en este mundo largo tiempo.
Y nuestros amos dicen que ya es hora
de callarme y hundirme en la basura.


 

ALTA TRAIÇÃO

Não amo minha pátria.
Seu fulgor abstrato
         é inacessível.
Mas (mesmo que soe mal)
         daria a vida
por dez de seus lugares,
         certa gente,
portos, bosques de pinheiros,
         fortalezas,
uma cidade desfeita,
         cinza, monstruosa,
várias figuras de sua história,
         montanhas
— e três ou quatro rios.

 

ALTA TRAICIÓN

No amo mi pátria.
Su fulgor abstracto
es inasible.
Pero (aunque suene mal)
daría la vida
por diez lugares suyos,
cierta gente,
puertos, bosques de pinos,
fortalezas,
una ciudad deshecha,
gris, monstruosa,
varias figuras de su historia,
montañas
- y três o cuatro rios.

 
                                                          Traduções de Floriano Martins

Fontes consultadas:
- blog Pessoa, de Triunfo Arciniegas
http://totodenadie.blogspot.com.br/
- Antônio Miranda http://www.antoniomiranda.com.br/iberoamerica/mexico/jose_emilio_pacheco.html


 

sábado, 10 de maio de 2014

AFONSO HENRIQUES NETO TRÊS VEZES


IDEOGRÂMICO

luz na água
Dia.
luz água
Peixe.
(dia noturno
Fábula, Um.
peixe no eterno
Tudo, Nenhum.)

 

NOVOS TEMPOS

veja o ilustre passageiro
o belo tipo faceiro
que você tem a seu lado
 
e no entanto não minto
quase morreu o distinto
tomando choque no pinto

 salvou-o o rum labirinto

 

 PLENA PRIMAVERA

a primavera entra pela minha janela
não em ramos floridos e ternuras
de açúcar na manhã
ela se infiltra pela minha janela
não em brotos de luz e carícias
de esplendor perfumado
 
a primavera entra pela minha janela
na obsessão erótica de teus olhos
sangrando a viagem
nos labirintos
do silêncio
as paisagens onde não ardem os frutos
nem colorem as flores
e em que navegas mais que nua
a brisa arrancada da garganta
pássaro
rubi de gritos na carne das florestas
um gozo submarino de cintilações
e anêmonas
onde nenhum mar arranha as pétalas
de sexo e pedra
desgovernada primavera na janela
 
 
                                   Afonso Henriques Neto. Tudo nenhum. SP: Massao Ohno, 1985.
 


quarta-feira, 7 de maio de 2014

FUTURO DO PRESENTE - panfleto

     
Zdzislaw Beksinski
                            


   a Adriane Lima


... e se procurarmos acharemos alguma culpa.
alívio brutal que nos exige a condenação
mas (se ato alheio)  pode ser só pro-forma.

a forma do que é monstruoso é nítida, mas
disfarçaremos e diremos: é nada, é (quando muito)
nódoa. como nos condenarmos?
 
e assim seguiremos o cortejo
feliz dos linchamentos e os teremos
registrados em nossas bugigangas eletrônicas
e compartilharemos felizes com a família
com os vizinhos com os netinhos
que nos acharão tão ingênuos e dirão
de nós “como eram doces e idílicos!”
e saberão que assim como eles,
assim como todos também carregamos a nossa culpa
se bem procurada.
 
por isso todo tijolo atirado sobre um crânio inerte
é pouco
as pernas abertas e os braços a ponto de se rasgarem as entranhas
é pouco
as esfoladuras e contusões e perfurações
é pouco
o pútrido valão onde ratos agressivos rejeitam o luxo de porcos
é pouco
toda a urina e todas as fezes vertidas sobre um deus pretenso vivo
é pouco
é pouco é pouco é pouco para o pecado
que (nos) acharemos – não tem jeito, acharemos

 
de novo perdemos a chance de entender
o que dizia Baudelaire sobre a verdadeira civilização:
ela não está no ipad no ipod no caixa eletrônico
no wifi no wireless no instagram no android -
está no apagamento das marcas
do pecado original. 

sábado, 3 de maio de 2014

JUAN GELMAN



ARTE POÉTICA

Entre tantos ofícios exerço este que não é meu,

como um amo implacável
obriga-me a trabalhar de dia, de noite,
com dor, com amor,
sob a chuva, na catástrofe,
quando se abrem os braços da ternura ou da alma,
quando a enfermidade afunda as mãos.

A este ofício obrigam-me as dores alheias,
as lágrimas, os lenços saudadores,
as promessas em meio ao outono ou ao fogo,
os beijos de encontro, os beijos de adeus,
tudo me obriga a trabalhar com as palavras, com o sangue.

Nunca fui o dono de minhas cinzas, meus versos,
rostos obscuros escrevem-nos como atirar contra a morte.


                                                           Tradução de Adriano Nunes

 

ARTE POÉTICA


Entre tantos oficios ejerzo éste que no es mío,

como un amo implacable
me obliga a trabajar de día, de noche,
con dolor, con amor,
bajo la lluvia, en la catástrofe,
cuando se abren los brazos de la ternura o del alma,
cuando la enfermedad hunde las manos.

A este oficio me obligan los dolores ajenos,
las lágrimas, los pañuelos saludadores,
las promesas en medio del otoño o del fuego,
los besos del encuentro, los besos del adiós,
todo me obliga a trabajar con las palabras, con la sangre.

Nunca fui el dueño de mis cenizas, mis versos,
rostros oscuros los escriben como tirar contra la muerte. 



                                       In: GELMAN, Juan. Poesía Reunida. Barcelona: Seix Barral, 2012.

 


Em janeiro deste ano morreu na cidade do México Juan Gelman, poeta, tradutor e jornalista argentino, que completaria 84 anos neste 3 de maio.  Desde  1976,  quando deixou seu país natal para  nunca mais voltar,  Gelman vivia no México.  A ditadura argentina (1976-1983) sequestrou seu filho e  sua nora, então grávida.   Diz-se que Gelman sempre manteve a esperança de conhecer a  neta – que,  ao contrário dos pais,  encontrava-se viva –,  e empreendeu inúmeros esforços para encontrá-la,  esforços estes  que mobilizaram intelectuais pelo mundo, a exemplo de Eduardo Galeano e José Saramago.  Em 2000 finalmente Gelman  a encontrou e a contactou; ao nascer, ela  havia sido entregue – num procedimento monstruosamente comum no contexto daquela ditadura – pelos militares argentinos a um casal uruguaio, que a criara.

       Em “El País”, Juan Cruz escreveu quando de sua morte: “Em abril do ano passado, quando publicou o seu livro Hoy, de prosa poética, explicou como se sentiu quando um dos assassinos de seu filho foi condenado. “Entre os culpados pelo assassinato do meu filho havia um general que foi condenado à prisão perpétua. Mas quando proferiram a sentença eu não senti nada. Nem ódio, nem alegria. E eu me perguntava o porquê, e isso me levou a escrever, para me perguntar o que tinha acontecido”. Nessa conversa, Gelman resumiu o seu descontentamento com o papa Francisco, a quem tinha apelado, quando o atual pontífice ainda era o bispo Bergoglio, para ajudar a encontrar seu filho. O bispo lhe disse que não podia fazer nada, “mas contou outra coisa à Justiça, contou que tinha feito esforços sem sucesso”.
      
        Na mesma matéria:  “Gelman ganhou os principais prêmios da literatura em língua espanhola: O Rulfo, o Reina Sofia de poesia, o Cervantes (2007). Para ele, a poesia era “uma forma de resistência”, mas esse compromisso civil não mudou sua maneira de ser um poeta. Hermético?, se perguntava. “Não, o que eu faço é respeitar o leitor, obrigá-lo a ler por dentro”. No Ateneu de Madri, em um de seus recitais tumultuados, sete anos após a descoberta de sua neta, ele leu seu poema Pai de então (cf. original abaixo)como se suas mãos, seus olhos e ele todo fossem tremer. “Assim que voltaste / como se não tivesse acontecido nada / como se o campo de concentração não / como se há vinte e três anos / que não escuto tua voz nem te vejo / devolveram o urso verde tu / sobretudo longuíssimo e eu / pai de então / voltamos à tua presença incessante / nestes ferros que nunca terminam / nunca acabarão? Já nunca acabarás de cessar / voltas e voltas / e tenho que te explicar que estás morto”. A ovação dolorida das pessoas foi a confirmação de que o público e o poeta se leram por dentro.

       Essa foi a história de sua vida: o filho morto, a nora morta, o desaparecimento da neta que deixou feridas. Tudo isso continuava vivo em seu olhar, como nesses versos pai de então. Foi comunista, jornalista e resistente, e a sombra desta história não lhe permitiu esquecer jamais essa militância contra o esquecimento.
 
 

 
PADRE DE ENTONCES
“Así que has vuelto
como si hubiera pasado nada
como si el campo de concentración no
como si hace veintitrés años
que no escucho tu voz ni te veo
han vuelto el oso verde tú
sobre todo larguísimo y yo
padre de entonces
hemos vuelto a tu hijar incesante
en estos hierros que nunca terminan
¿Ya nunca cesarán?
ya nunca cesarás de cesar
vuelves y vuelves
y te tengo que explicar que estás muerto”.
 
Links desta postagem:
 
http://astripasdoverso.blogspot.com.br/search/label/JUAN%20GELMAN  (Blog de Adriano Nunes)

http://totodenadie.blogspot.com.br/search/label/Juan%20Gelman (Blog de Triunfo Arciniegas)

quinta-feira, 1 de maio de 2014

WILLIAM BLAKE

Retrato de William Blake - Thomas Phillips, 1807


A MOSCA

 
Pequena Mosca,
Teus jogos de estio,
Minha irrefletida
Mão os destruiu.

Pois, como tu,
Mosca não sou eu?
E não és tu
Homem como eu?

Eu canto e danço e
Bebo, até que vem
Mão cega arrancar-me
As asas também.

Se é o pensamento
Vida, sopro forte,
E ausência do
Pensamento morte,

Então eu sou
Uma mosca travessa,
Mesmo que viva
Ou que pereça.

                                                             Tradução de José Paulo Paes

 
 
THE FLY

Little Fly,
Thy summer’s play
My thoughtless hand
Has brush’d away.
 
Am not I
A fly like thee?
Or art not thou
A man like me?
 
For I dance
And drik and sing,
Till some blind hand
Shall brush my wing.

If thought is life
And strength & breath,
And the want
Of thought is death,

Then am I
A happy fly
I I live
Or if I die.
                     

 
In: José Paulo Paes. Gaveta de tradutor: versões de poesia.  Florianópolis: Letras Contemporâneas, 1996.