quinta-feira, 18 de abril de 2024

EU SERIA UM DEUS CORRUPTÍVEL (Incidente em Bangu)

 
Zdzislaw Beksinski #38  por Rachid Fikri



preciso de algum
                   - na verdade de um pouco mais do que algum
pra reformar a casa e
                  
uma nova televisão
 
preciso sair do puxadinho no labirinto de labirintos
de puxadinhos dentro do terreno de 12 x 8 + 23 parentes e
encostados labirínticos
 
por isso vim resolutamente caminhar por essas ruas causticantes
que evaporam a chuva antes mesmo que ela bata nas pedras
da calçada
a empurrar-me e a  esta cadeira com o  corpo e estes trapos que cuidadosamente
lavei antes de sair de casa, embora faltem sapatos e a sola do pé
do corpo na cadeira vá ficando encardido cada vez mais à medida que
caminhamos
 
(lavei os trapos cuidadosamente afinal a agência do banco
fica dentro do shopping e os seguranças costumam expulsar
quem anda sujo por aqueles corredores ante aquelas vitrinas cintilantes
embora ao reparar nos pés imundos do homem na cadeira
se mostrem todos compreensivos – afinal, é um morto)
 
“acorda, tio Paulo”
“assina, tio Paulo”
“você precisa assinar, tio Paulo”
 
“meu Deus...”
 
ao ouvir que me chamava, prestei atenção
olhei para o lado
e liberei: 
o que são 17 mil para um banco?
tio Paulo mesmo acordou embora continuasse imóvel
em seu assento e assim  foi de olho rútilo
                            - embora cochilasse aqui e ali
e  riso satisfeito

até a hora de ser enterrado.

domingo, 14 de abril de 2024

EM QUE MORRESTE

     



    Acordei com vontade de reativar este blog, que desativei há quase seis anos, depois de nove anos de intensa atividade.  O espírito a presidir sua existência continua o mesmo, sintetizado em sua breve e protocolar descrição: "poesia, literatura, música, futebol, comes e bebes, humor, bom humor, mau humor..."  o que vier de diferente,  acréscimo ou de supressão,  será sinal do tempo passado a cunhar  suas mudanças neste escriba.

    Como primeira postagem da retomada, posto um esboço - que em italiano se diz "bozzetto", plural: "bozzetti"  - de poema, motivado por dias de luto, consternação, medo, impotência... enfim, nossos dias.  A foto que a acompanha circulou na mídia esta semana.  

    Aproveito para linkar aqui uma descoberta de agora há pouco, de um veículo que me parece precioso para acompanhar os constantes e inquietantes acontecimentos nas periferias que "coalescem em torno de nossas cidades sitiadas", como diz a canção "Ronda carioca", dos chapas Fernando Pellon e Paulinho Lêmos (procurem conhecer)*.   Mas o link de que falo é para a Iniciativa Direito à Memória e Justiça Social https://dmjracial.com/ .

    E o poema em construção é este    


EM QUE MORRESTE

Eu poderia me chamar João e estudar
ciências abstrusas, números irracionais, letras
apagadas e ter amor ao que faço ou finjo
fazer, criar corvos,  entrar e sair de tretas
ir ao mercado comprar maçãs, apostar no bicho
jogar o peixe pescado aos gatos
e nem de longe pensar em nada parecido com assassinatos
ao redor de mim
 
e eu não teria por que ser morto
 
Eu gostaria mesmo é que meu nome de fato
fosse Marcus Vinícius e se eu fosse ruim de bola
e ser barrado até no gol, mas bom da bola
e dedicar meu tempo a organizar os comerciários
contra comerciantes gananciosos  e argentários
ainda que me ameaçassem em vão com o assassinato
meu provável fim
 
 eu não teria por que ser morto
 
Eu quereria me chamar Joaquim Maria e ser herdeiro
de um vasto latifúndio de infortúnios
e de tanto me esforçar tornar-me exemplo
exímio construtor de pontes e túneis
e expulsar de tantos outros templos os vendilhões
de sempre a atender para todo o sempre orações e assassinatos
sem fim
 
e eu não teria por que ser morto


(* para ouvir "Ronda carioca", indicada acima, na voz de Fátima Guedes, acessem o site de Fernando Pellon em https://fernandopellon.com.br/


sexta-feira, 28 de setembro de 2018


QUATRO CANTOS DO RIO AOS 21 ANOS


            Ainda não está totalmente claro, mas acho que vou reativar este blog, cuja última postagem tinha sido  feita no final de abril, com um poema em que homenageei uma amiga querida, que havia nos deixado há poucos dias.
         Caso eu resolva de fato voltar à atividade blogueira, penso que terei de fazer mudanças importantes quanto ao material postado (nenhum problema com qualidade, nada disso, principalmente das produções alheias, das quais muito me orgulho) e periodicidade.  Mais exatamente: tem mais a ver com as formas de postar.  Os próximos dias e as próximas postagens – ou sua ausência – definirão aos poucos esses caminhos.
         O que me levou a este retomar, por ora provisório, foi o fato de eu ter mais uma vez vasculhado meus arquivos, aquilo que durante muito tempo foi papel e que aos poucos foi virando arquivo de computador, e daí vai que acabei topando com o que era para ter sido meu primeiro livro editado, que nunca saiu,  Pouca vergonha, que seria lançado em 1982 ou 83, já nem sei bem. Já falei dele aqui, acho até que mais de uma vez, bem como já postei poemas que o integrariam, escritos quando eu tinha no geral 20 e poucos anos.
         E eis que me deparando de novo com esses textos, resolvi que cabe agora postar quatro deles de 1977, que têm a cidade do Rio como presença – explícita ou apenas sugerida.  Enfim, sem querer me estender mais, ei-los aí.

 

 

 

SÃO COSMIDAMIÃO





os restos dos dias
escorrem na pele
com o suor do rosto
se ganha suor

o espírito come o pão
que o diabo vende




RÉQUIEM


o dia amanheceu enforcado num poste da avenida
e os proscritos
                   pedra pedra pedra
rindo
de sua figura grotesca
                            balouçante
                   inerte

um sentimento carniceiro pousou
a rodear o cadáver

os pequenos marginais urbanos
                   pivetes
                   putas
                   gigolôs
                   assaltantes a mão armada
resolveram estender seus horários
de trabalho
                   - a vida
                   clamava por uma solução

está lá.  roxo.
não suave prenúncio de auroras
mas asfixiado.




VALSA DE UMA CIDADE


viver no Rio
         me deixou alguma beleza nas retinas

                            o ônibus célere entre manhãs
                                                        despindo
                            árvores, pardais
                            a mais no carinho do olhar
                            Praça Paris
                            memórias
                                        e mesmo
                            futuras esperanças

- paisagem útil, inútil paisagem -

vês?

                            impulso assassino, simples tique
                            de suicídio     a nuca entre arestas
                            estas mãos que não se decidem:
                                               plena oferta
                                                                  ou
                                               trêmula recusa
                            esta vertigem de becos celestes
                            um estertor premonitório o corpo
                            destrinchado por 4 rodas
                            - sensação de aguardar perícia

                            contraponto entre
                   fera e medo
viver no Rio.




(“É proibido o uso de aparelhos sonoros no interior deste veículo” - diz o aviso.  No entanto a transmissão clandestina se faz ouvir no rádio clandestino do poeta


Praça Paris


     ao sol da manhã
                        os mendigos
               os pombos

a mãe fala:
somos todos irmãos

o menino inventa:
 a palavra fratrifagia




                                                                  melhor desligar antes que o
                                                                  trocador descubra)

segunda-feira, 30 de abril de 2018

POEMA DOS FINS


(DILUÍDO DE AUGUSTO DE CAMPOS)
                                     

                              para Rosemary Granja


Diante do fim sempre a pergunta:
Com que fim
resvala o corpo ao ermo?

Silenciosos sós como pós
nós nos
vivemos na orla do cosmos

Por muitos átimos
intermitentes
vazios  entre orgasmos

habitamos - e nos olhamos
nas cismas
de almas a esmo

Os que aqui ficamos
nos abraçamos
como um fim em si mesmo.


Foto: Carolina Bezerra

segunda-feira, 9 de abril de 2018

CINCO POEMAS DE EDSON PEREIRA S.: marEmoto


Construí-los de água e sal
Dar-lhes movimentos de marés
Cores de oceano
E navegá-los

Cometer naufrágios
Dando-lhes mistérios

Construí-los com melodia de marulho
E silêncio abissal
Calcareamente brancos
Como coração de concha

Povoar de espécies
Plâncton, nécton, bentos

Construí-los reto horizonte
E deixar-los ir
Vela, vento
Asa

Linha, traço, rota
Solitude

2

Anoiteço
Sem estrelas, sem lua
Noite apenas

Navego
Escuro, só
Negras vagas

Até onde possa
Aportar
Manhã


3

Que saudade do trem
Trenzinho
Leopoldina
Caipira

Levava a gente
A Nictherói
Seis horas de viagem
Ansiedade e pó

Na partida
A despedida
Lenço branco de cambraia
De interior

Porto do Carro
Campo Redondo
Adeus ainda
Na nossa cabeça

Araruama
Sampaio Correia
Trilho
Fumaça

Na estação
Cidade grande
Olhos grandes
De espanto

Cabo Frio ficou
No convento
Na ponte
No anjo caído

4


Reside o vento em mim
Como nas palmeiras
Há muito faz
É dono do emaranhado do meu cabelo
Há muito faz
Nordeste, sudoeste
Nas velas do pensamento

Mas sou comandante desse barco
Não discernisse o rumo
Seria naufrágio
Donde reside o vento
Donde resido vento

Linha do sol, sextante, compasso
Traço a rota
Caço a vela
Miro a proa
Nessas águas de vento


5
Quando veio o vento
Eram noturnos e
Ébrios
Dançavam boleros

E quando vieram
Os peixes da chuva
Suas bocas morriam
Em inverno e verão
Tempo e frenesi
De libélulas

Até que veio a manhã
E fez deles
Uma rosa estiagem
De outono






        Sera lançado nesta terça-feira, dia 10 de abril, o livro de poemas de Edson Pereira S., para o qual tive a honra de ser convidado a escrever a orelha de apresentação, que posto a seguir:

Mar substantivo
         A escrita em marEmoto distingue-se de saída pela sobriedade, pela  inênfase da voz poética: dicção elíptica,  poucos adjetivos que, quando presentes, é como se quisessem passar despercebidos: via de regra, designam pouco mais que  a cor ou são apenas fantasmagoricamente visíveis em locuções adjetivas (“latitudes de auroras/longitudes de poentes”), ou ainda “disfarçados” em advérbios,  a qualidade rarefazendo-se em circunstância: “naufragarei navio”. Quando brilham em inventividade são ótimos achados de substantivos em função adjetiva, no que a antiga retórica cataloga como enálages: “amor nave”/”cabelos Atlânticos”.   Porque o que prevalece aqui é a concretude,  são os nomes que, frequentemente remetendo ao mar,  designam o  horizonte do todo, mais do que sua ambientação; em especial na segunda parte do volume os verbos deixam claro a que vieram,  respondendo pelo  efetivo movimento designado no título por “moto”, imagem axial  a comandar em  boa medida os principais efeitos da leitura do livro: veja-se, por exemplo, como  a ideia de estabilidade, de fundamento presente,  num dos melhores poemas do livro,  no correlato “residência”,   assim se resolve no  seu contrário : “Reside o vento em mim/Como nas palmeiras/Há muito faz/(...) Donde reside o vento/Donde resido vento”. Observe-se que não é “onde”, é “donde”, com uma implícita sugestão não da plácida ideia da estabilidade do morar, mas de ser proveniente de algum lugar, ou seja, habitar (n)a mudança, como a dizer que é tudo movente, de modo tal  que  os próprios significados de águas e de vento entram na íntima relação de aproximação amorosa, o  que é uma das pedras de toque de toda boa poesia: “Nessas águas de vento”.  Em marEmoto o horizonte é o movimento. Do mar à terra,  daí às anotações da vida social na terceira parte do volume, quando, nos últimos poemas,  o acidental parece atingir a própria dimensão gráfica dos textos. Poética da concretude que parte do mar e dele e nele lança suas redes: Pancetti e Caymmi sempre souberam da substantiva  inextricabilidade de mar e movimento.”





          Amigo de longa data que sou do autor, deixo que ele mesmo se apresente, tal como está em marEmoto:

Edson Pereira da Silva assina aqui Edson Pereira S. para não incomodar soletrando tanto alemão da primeira versão (ou seria judeu, digo, novo cristão?). Nascido em Cabo Frio, onde foi criado, sua terra virou quimera (em todos os maus sentidos). Hoje exilado em Niterói, está longe um oceano donde viveu sete anos e lhe trouxe de volta um avião, embora a alma ainda nade em indecisas águas. E a poesia? Como diria Mário de Andrade:

Todo escritor acredita na valia do que escreve
Si mostra é por vaidade
Si não mostra
É por vaidade também.

Resolvida, então, esta questão (?). Quanto às musas, estão todas implícitas, quanto às crenças, estão todas explícitas e não se fala mais nisso. Não tem celular, navega mal na internet (tantos naufrágios...), mas tem e-mail para correspondência (gbmedson@vm.uff.br) embora seja preciso um pouco de paciência, se a pessoa desejar, realmente, uma resposta. Todos os poemas daqui são antigos, como já está ficando ele mesmo.


Edson Pereira da Silva. marEmoto.  Rio de Janeiro: Editora Texto Território, 2018. 


sábado, 17 de março de 2018

46502




I


Tantos cadáveres empilhados
naquelas tais fotografias
doem
(sabê-los
dói)

Se você não resistir e mais uma vez voltar
atrás
não se transformará em manequim de sal
a aguardar o contato da agência internacional
nem perderá para sempre o seu amor
sorvido em trevas pelo melhor contrato publicitário
de vossas  vidas.
Se mais uma vez você não resistir
e voltar e olhar
pra trás
doerá de novo
ver as mesmas fotos com tantos cadáveres empilhados
como doeu
quando pela primeira vez você viu as fotos
de Treblinka e Auschwitz
quando o mundo pela primeira vez viu as fotos
de Treblinkla, Sobibor, Auschwitz
como dói a cada vez que voltamos a elas para as olharmos
(uma dor que chega a dar certo conforto
- e por isso  voltamos a elas?).
As fotos registraram e certamente ficarão aí para sempre
ao menos enquanto durar nosso sempre
que estamos descobrindo também perecível

- mas sem conforto o que dói
é que os cadáveres empilhados numa quase imperceptível diacronia
vão sendo apagados

nós também os vamos apagando
cada caso cada corpo cada rosto cada nome
cada circunstância de que já não sabemos
não lembramos
nem onde pusemos sua foto
(sabê-lo, sim
dói)







II


Não se empilham mais cadáveres como antigamente
embora pegue fogo a maré
embora haja fogo no alemão
os assassinos mandam recado claro
repercutido pelo corajoso pânico das vítimas potenciais
queremos que o bairro queime e que todo mundo
o mundo todo fique sabendo
como se lapidássemos um coletivo epitáfio

não existe amor no RJ
não existe amor em SP
ninguém mais morre de amor
no largo do Estácio

mas somos 46502
e muitos mais.